A revisão por pares, há muito considerada o pilar da validação científica, enfrenta hoje questionamentos sobre sua eficiência, transparência e capacidade de identificar falhas metodológicas ou interpretações duvidosas.
Em meio à transformação digital, ao crescimento exponencial de publicações e à demanda por mais abertura no processo científico, surge com força a revisão pós-publicação (post-publication peer review, PPPR) como alternativa ou complemento necessário.
A ideia deste texto é propor uma reflexão ampla e argumentativa sobre como práticas emergentes de revisão pós-publicação podem fortalecer a ciência, tornando-a mais aberta, dinâmica e autocorretiva.
Limite da revisão tradicional
O modelo clássico de revisão por pares ocorre antes da publicação, geralmente sob anonimato e com pouca transparência. Ainda que seja crucial para garantir um filtro mínimo de qualidade, esse processo apresenta limitações estruturais: pode demorar meses, muitas vezes falha em identificar fraudes ou erros e, em certos casos, é permeado por conflitos de interesse e vieses institucionais ou ideológicos. Além disso, uma vez publicado, o artigo ganha uma espécie de “selo de aprovação” que pode ser difícil de contestar posteriormente — mesmo quando erros são evidentes.
Nesse cenário, o conceito de ciência como um sistema autocorretivo é comprometido. É nesse ponto que a revisão pós-publicação ganha protagonismo: ela permite que artigos continuem sendo avaliados criticamente pela comunidade científica após sua divulgação, oferecendo um canal público e contínuo de escrutínio e melhoria.
A PPPR está profundamente alinhada aos princípios da ciência aberta: transparência, participação e colaboração. Diferentemente do modelo tradicional, ela pode ocorrer em fóruns públicos, repositórios abertos e plataformas especializadas, muitas vezes com revisão aberta (open peer review), na qual revisores se identificam e tornam seus pareceres públicos.
Essa prática amplia a diversidade de vozes no debate científico, e permite que pesquisadores de diferentes áreas, origens institucionais e níveis de experiência contribuam com críticas e sugestões. Também reforça a cultura da responsabilidade compartilhada — autores, leitores, revisores e editores passam a atuar conjuntamente na vigilância da qualidade e integridade da literatura científica.
Além disso, a PPPR ajuda a resolver um paradoxo central da ciência contemporânea: a tensão entre a rapidez da divulgação e o rigor da avaliação. Ao permitir que artigos sejam publicados rapidamente — mas com a possibilidade de receberem críticas posteriores —, essa prática combina agilidade e aprofundamento de forma escalável.
Plataformas emergentes
Nos últimos anos, várias iniciativas têm impulsionado a revisão pós-publicação como prática institucionalizada e tecnicamente viável.
PubPeer: talvez a mais conhecida plataforma de PPPR, permite comentários públicos (e anônimos) sobre artigos já publicados. Tem se mostrado fundamental para identificar fraudes, inconsistências metodológicas e conflitos de interesse, inclusive levando à retratação de artigos de alto impacto.
F1000Research: plataforma que publica artigos imediatamente após uma verificação inicial e os submete a uma revisão por pares aberta e contínua. O processo de revisão, incluindo pareceres e respostas dos autores, é totalmente transparente.
Preprint servers com comentários (como bioRxiv e medRxiv): embora não realizem revisão formal, muitos servidores de preprints integram funcionalidades para comentários públicos, funcionando como embriões de PPPR.
Hypothesis: ferramenta de anotação aberta na web, que permite que qualquer leitor adicione comentários diretamente sobre o texto de artigos, promovendo uma leitura crítica colaborativa.
Review Commons e eLife: iniciativas editoriais que promovem a revisão por pares antes e depois da publicação formal, em um modelo de revisão contínua que acompanha o ciclo de vida do artigo.
Essas experiências demonstram que a revisão pós-publicação é uma prática concreta e crescente. Cabe aos editores, publishers e instituições científicas reconhecerem seu valor e adotarem políticas que a integrem de forma orgânica aos fluxos editoriais.
Riscos, desafios e oportunidades
Como qualquer inovação, a PPPR enfrenta desafios. Comentários maliciosos, críticas infundadas ou a superexposição de pesquisadores mais jovens podem gerar tensões. Também há o risco de dispersão — com comentários relevantes sendo feitos em múltiplas plataformas, dificultando o rastreamento do debate.
Para enfrentar esses riscos, é necessário estabelecer protocolos éticos, mecanismos de curadoria e integração técnica entre plataformas. A construção de reputação digital, como já ocorre com revisores identificados em plataformas como Publons ou Orcid, pode ajudar a valorizar contribuições críticas e embasar discussões construtivas.
Por outro lado, a PPPR representa uma oportunidade estratégica para revistas e publishers que desejam se destacar em um ecossistema cada vez mais orientado à transparência e à confiança. Ao adotar ferramentas de revisão contínua, periódicos podem ampliar seu impacto, atrair autores comprometidos com a qualidade e construir comunidades mais engajadas.
A revisão pós-publicação, ao transformar leitores em coavaliadores e estender a vida crítica dos artigos para além da publicação, é uma resposta coerente aos desafios contemporâneos da comunicação científica.
Mais do que um substituto, ela deve ser compreendida como complemento estratégico à revisão tradicional. Sua institucionalização — por meio de políticas editoriais, formação de revisores e integração de plataformas — será decisiva para a consolidação de uma ciência mais aberta, confiável e verdadeiramente autocorretiva.
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