A revisão por pares é um dos principais instrumentos de validação do conhecimento científico. Desde o século XVII, quando revistas como a Philosophical Transactions, da Royal Society, introduziram a ideia de submeter manuscritos à avaliação de especialistas antes da publicação, esse sistema tem servido como filtro de qualidade, rigor metodológico e originalidade.
Contudo, o modelo contemporâneo enfrenta tensões: o número de artigos cresce em ritmo acelerado, enquanto a quantidade de revisores disponíveis não acompanha essa demanda. Nesse contexto, uma prática polêmica, mas crescente, começa a tomar forma: a inclusão de estudantes de pós-graduação como revisores ad hoc em periódicos científicos.
Se, por um lado, essa prática parece promissora como ferramenta de formação e oxigenação do processo editorial, por outro, levanta questões sobre qualificação, ética, autoria e responsabilidade. O que acontece quando os pares ainda estão em formação? É possível compatibilizar capacitação e confiança no mesmo processo?
Novo perfil de pareceristas
A ciência do século XXI é cada vez mais interdisciplinar, técnica e veloz. Isso exige dos revisores domínio teórico, fluência em linguagens computacionais, familiaridade com novas metodologias experimentais, estatísticas e com os princípios da ciência aberta e reprodutível. Em muitos casos, pós-graduandos, especialmente doutorandos e pós-doutorandos, estão mais atualizados nessas áreas do que pesquisadores seniores.
Nesse sentido, diversas iniciativas vêm apostando em programas de formação e inclusão gradual de jovens cientistas no processo de revisão. Em algumas revistas, os editores selecionam ativamente doutorandos de destaque para atuarem como coavaliadores, sob a orientação de revisores mais experientes. A ideia é criar uma espécie de “residência editorial”, nos moldes das residências médicas, em que a prática supervisionada serve como base para a formação de avaliadores éticos, criteriosos e comprometidos com a ciência.
Experiências institucionais
Diversas universidades têm reconhecido que revisar artigos é uma habilidade que pode (e deve) ser ensinada. A Universidade de Michigan, por exemplo, oferece o curso “How to Peer Review a Manuscript” para alunos de doutorado como parte de sua formação complementar. A Universidade de Toronto promove workshops que simulam o processo de avaliação em parceria com revistas acadêmicas, e a Universidade da Califórnia (Berkeley) criou um programa chamado “Peer Review Training for Early Career Researchers”, com módulos sobre ética, comunicação assertiva e julgamento técnico.
No Brasil, algumas pós-graduações também têm avançado nesse sentido. A Escola de Altos Estudos da Fiocruz, por exemplo, já promoveu seminários e oficinas sobre revisão por pares, e programas de iniciação científica em pesquisa clínica da USP e da UFRJ incluem orientações sobre como avaliar artigos com base em guias como Consort, Prisma e Strobe.
Esses esforços respondem a uma necessidade concreta: segundo uma pesquisa da editora Wiley com mais de 3.000 editores, 73% relataram dificuldade em encontrar revisores qualificados e disponíveis. O envolvimento dos pós-graduandos ajuda a suprir essa lacuna, mas apenas quando inserido em estruturas que garantam orientação, avaliação contínua e responsabilização.
Zonas cinzentas
Apesar das vantagens formativas, o uso de estudantes como revisores pode comprometer a integridade do processo quando feito de forma improvisada, invisível ou sem acompanhamento. Um dos principais problemas é a prática, ainda comum, de orientadores que repassam pareceres para seus orientandos elaborarem — muitas vezes sem sequer revisar o texto final ou comunicar a coautoria à revista.
Essa prática fere o princípio da transparência e coloca os orientandos em uma posição vulnerável: de um lado, assumem responsabilidades sem respaldo formal; de outro, não recebem o devido reconhecimento por seu trabalho. O Comitê de Ética em Publicações (COPE) já se pronunciou contra esse tipo de delegação silenciosa, orientando periódicos a exigir que qualquer correvisor seja nomeado explicitamente e tenha seu papel formalizado.
Outro dilema é o da imparcialidade. Revisores experientes tendem a reconhecer quando têm conflito de interesse ou quando não dominam suficientemente o tema para emitir um parecer justo. Pós-graduandos, muitas vezes, ainda estão aprendendo a identificar esses limites. Sem supervisão, podem emitir pareceres enviesados, exageradamente negativos ou excessivamente indulgentes — ambos prejudiciais ao rigor científico.
Além disso, a revisão por pares é um dos poucos momentos em que o poder entre cientistas pode se inverter: o jovem pode estar avaliando o trabalho de um nome estabelecido, com influência política e editorial. A insegurança diante desse cenário pode afetar a qualidade da avaliação e gerar tensões éticas, especialmente quando há anonimato parcial ou quando o parecerista teme represálias futuras.
Caminhos sustentáveis
O desafio, portanto, é criar estruturas que tornem essa prática legítima, transparente e benéfica para todas as partes. Um primeiro passo é formalizar programas de correvisão, em que o orientador atua como tutor, mas o nome do estudante é incluído no processo — como já fazem algumas revistas. Isso permite que os iniciantes aprendam com os erros e acertos, ao mesmo tempo em que são acompanhados por alguém com mais experiência.
Outra possibilidade é criar faixas editoriais específicas para pareceristas em formação, com escopo limitado e regras adaptadas. O PREreview, por exemplo, foca na avaliação de preprints — uma etapa anterior à submissão formal — e permite que estudantes pratiquem avaliação crítica em ambiente mais flexível, com apoio de mentores e feedback da comunidade.
Por fim, é necessário que as agências de fomento e universidades reconheçam o papel da revisão científica como parte do processo formativo. Assim como escrever artigos, ministrar aulas ou organizar eventos, revisar manuscritos deve contar como atividade acadêmica válida no currículo. Ferramentas como o Publons, o Orcid e o Scopus já permitem o registro dessas atividades, mas é preciso criar culturas institucionais que valorizem esse trabalho.
Responsabilidade compartilhada
Permitir que pós-graduandos participem da revisão científica não é um erro: é uma oportunidade. Mas como toda boa oportunidade, ela exige estrutura, ética e compromisso coletivo. Ao abrir espaço para os pares em formação, a ciência pode não apenas formar revisores melhores, mas também fortalecer sua própria base de confiabilidade e renovação.
É preciso, contudo, lembrar que a revisão por pares não é apenas uma tarefa técnica, mas um gesto ético: um cientista dedica tempo para ajudar outro a melhorar seu trabalho, confiando que o processo é justo e baseado no mérito. Quando pós-graduandos assumem esse papel sem apoio ou reconhecimento, há risco de banalização do processo e desvalorização do conhecimento.
A revisão entre pares em formação, portanto, não deve ser vista como um atalho, mas como uma trilha pedagógica. Com treinamento, transparência, supervisão e respeito, ela pode se tornar um instrumento poderoso para democratizar e qualificar ainda mais a ciência — de dentro para fora, e de baixo para cima.
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