Frequentemente descrita como a “espinha dorsal” da ciência moderna, a revisão por pares tem como objetivo validar os achados científicos antes de sua publicação. No entanto, o crescimento exponencial da produção científica nas últimas décadas colocou esse modelo sob forte pressão.
Segundo a STM Report (2023), mais de 3 milhões de artigos científicos são publicados anualmente, o que cria uma sobrecarga nos revisores e um tempo médio de publicação que ultrapassa 180 dias em muitas revistas.
Diante desse cenário, ganha força o debate sobre o uso da inteligência artificial como alternativa para acelerar e qualificar o processo de revisão por pares. Mas até que ponto essa automação é possível, ética e eficaz? Qual é o potencial transformador da IA na revisão científica?
A promessa mais imediata da IA é a redução drástica do tempo necessário para triagens e revisões técnicas. Sistemas como o eLife’s SIFT, por exemplo, utilizam IA para verificar conformidade com critérios editoriais, destacando inconsistências e lacunas. Com isso, realizam uma pré-avaliação em menos de dez minutos, um processo que levaria horas para um editor humano.
Outro caso relevante é o da Frontiers Media, que utiliza algoritmos para detectar duplicações, erros estatísticos, citações inadequadas e conflitos de interesse. Em 2021, a empresa reportou que essa abordagem reduziu em até 40% o tempo médio entre submissão e publicação.
Ferramentas antiplágio como Turnitin, iThenticate já são amplamente utilizadas para identificar similaridades textuais, paráfrases indevidas e possíveis plágios. Além disso, sistemas como o StatReviewer avaliam automaticamente a correção de métodos estatísticos usados, apontando erros comuns em testes de hipóteses, regressões e amostragens.
A IA também pode contribuir para identificar fabricação de dados, uma prática difícil de detectar manualmente. O algoritmo ImageTwin, por exemplo, foi desenvolvido para identificar reutilização de imagens em artigos científicos, como figuras de microscopia ou Western blots, aumentando a confiabilidade de pesquisas visuais.
A IA pode personalizar o processo de atribuição de revisores com base no conteúdo do artigo, nas publicações anteriores e nas afinidades temáticas, reduzindo o viés humano. O sistema da Springer Nature, da mesma forma, usa algoritmos para encontrar revisores com base em análise semântica de milhões de publicações científicas, melhorando a adequação entre manuscrito e revisor.
Desafios técnicos e éticos
Sistemas de IA são tão imparciais quanto os dados que os alimentam. Se os datasets usados para treinar algoritmos privilegiam publicações em inglês, de revistas ocidentais e de autores consagrados, há risco de perpetuar desigualdades regionais, linguísticas e institucionais. Uma pesquisa da Nature (2022) apontou que algoritmos de ranqueamento automático favoreceram 20% mais artigos de autores dos Estados Unidos e da Europa Ocidental em relação a autores de países em desenvolvimento.
Além disso, abordagens disruptivas e metodologias não convencionais podem ser penalizadas pela IA por não se adequarem a padrões “esperados”, levando a uma ciência mais conservadora e menos inovadora.
Apesar dos avanços de modelos como o GPT-4 e o Claude, a IA ainda não compreende significado da mesma forma que humanos. Ela pode identificar erros formais, mas não avaliar originalidade, relevância teórica ou impacto social de uma pesquisa. Isso é especialmente crítico em ciências humanas, onde a subjetividade e o contexto são essenciais.
Decisões tomadas por IA devem ser explicáveis e auditáveis. No entanto, muitos sistemas operam como “caixas-pretas”, com critérios complexos e pouco transparentes. Isso levanta as seguintes perguntas: se um algoritmo rejeita um artigo com base em critérios automatizados, quem responde pelo erro? Como o autor pode apelar ou questionar essa decisão?
A ausência de regulamentação clara agrava o problema. Atualmente, não há consenso internacional sobre o papel permitido da IA na avaliação científica, embora iniciativas estejam surgindo, como as diretrizes do Committee on Publication Ethics (COPE).
Caminho viável
Dado o cenário, é prudente defender uma automação parcial e supervisionada da revisão por pares, focada nas tarefas mais repetitivas e suscetíveis a erros humanos. Isso inclui triagem técnica inicial (estrutura, metadados, formatos, referências); verificação estatística e de plágio; sugestão de revisores com base em aprendizado de máquina; e resumo automático do conteúdo para editores humanos.
Com isso, os revisores humanos podem se concentrar na análise crítica, teórica e ética do artigo, garantindo um equilíbrio entre agilidade e qualidade. Essa abordagem colaborativa já está sendo adotada em revistas como a PLOS One e IEEE Access, com resultados promissores.
O papel das instituições científicas
Universidades, agências de fomento e editoras científicas precisam liderar esse processo de transição com transparência, formação e regulamentação. É fundamental capacitar pesquisadores para o uso crítico da IA, estabelecer protocolos de validação ética e garantir que o uso da tecnologia seja sempre explicável, auditável e reversível.
A Unesco, em seu relatório sobre Ética da Inteligência Artificial (2021), defende o princípio da “supervisão humana significativa” como critério fundamental para o uso ético da IA em qualquer setor — inclusive o científico.
Sim, é possível — e urgente — colocar o processo de peer review automatizado em debate. A inteligência artificial oferece soluções concretas para desafios reais da ciência contemporânea: o excesso de publicações, a escassez de revisores e a lentidão dos processos. No entanto, o entusiasmo pela eficiência não pode eclipsar o imperativo da ética, da diversidade e da reflexão crítica.
O futuro da revisão por pares deve ser tecnologicamente assistido, mas essencialmente humano. Inteligência artificial pode ser nossa aliada, desde que guiada por inteligência ética e científica. Afinal, a ciência não avança apenas com precisão: ela precisa também de discernimento.
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