A transformação digital chegou com força à ciência, não apenas nos métodos de pesquisa e análise de dados, mas também na forma como textos acadêmicos são produzidos. Por isso, o uso de ferramentas automáticas de reescrita — baseadas em inteligência artificial ou algoritmos de substituição lexical — representa um novo e preocupante ponto de tensão ética.
Mais do que uma simples questão de estilo, essas ferramentas são hoje utilizadas, em muitos casos, como instrumentos para disfarçar plágio, contornar sistemas de detecção de similaridade textual e, em última instância, fraudar a originalidade de um artigo.
O debate que se impõe vai além do binômio “cópia e colagem”. Envolve questões complexas como a autoria intelectual, a integridade da produção científica, os limites da automação na escrita e o papel das revistas acadêmicas na identificação de conteúdos parafraseados de forma antiética. Em outras palavras, quando o plágio é mediado por algoritmos, o desafio deixa de ser apenas tecnológico — e se torna também filosófico, editorial e jurídico.
Plágio acadêmico sempre foi um problema — mas era, até pouco tempo, um algo relativamente simples de detectar. Bastava comparar trechos textuais, identificar similaridades diretas e verificar ausência de citação. Hoje, contudo, com ferramentas como QuillBot, Wordtune, Paraphrase Tool, Spinbot e a utilização de modelos de linguagem generativos (como GPT, Claude ou Gemini), é possível reescrever parágrafos inteiros automaticamente, substituindo termos, reformulando frases e até adaptando o estilo, sem que isso altere substancialmente o conteúdo, ou as ideias originais.
Esse tipo de parafraseamento é, muitas vezes, indetectável por softwares como iThenticate, Turnitin e Similarity Check — que ainda se baseiam, majoritariamente, em reconhecimento lexical e não semântico. Assim, a ferramenta detecta que o texto é “original” do ponto de vista das palavras, mas ignora que a ideia foi indevidamente apropriada.
Um exemplo concreto veio à tona em 2021, quando um famoso periódico identificou quatro artigos provenientes da mesma instituição na Ásia que utilizavam estruturas teóricas e até dados idênticos a estudos anteriores. As versões haviam sido parafraseadas por IA, mas a comparação semântica feita manualmente por revisores revelou que se tratava do mesmo conteúdo. Os autores alegaram ter usado “ferramentas de reescrita para melhorar o inglês acadêmico”. O caso gerou uma nota de retratação pública e levou o periódico a reforçar seus critérios editoriais.
Ferramentas poderosas, usos ambíguos
O uso ético de ferramentas de reescrita não é, por si só, condenável. Pelo contrário: muitos pesquisadores, especialmente de países com inglês como segunda língua, dependem desses recursos para tornar seus textos mais claros, coesos e compreensíveis. O problema surge quando o objetivo não é melhorar o estilo, mas sim disfarçar a origem do conteúdo.
Anos atrás, algumas editoras emitiram diretrizes desencorajando o uso de ferramentas de IA para reformular conteúdos alheios. Embora reconhecessem os benefícios de modelos de linguagem em revisões de estilo e gramática, elas entenderam que o uso dessas ferramentas para gerar ou modificar grandes porções de texto sem revisão humana e sem atribuição adequada pode violar os princípios de originalidade e autoria.
Outro exemplo emblemático é o de uma editora indiana, que em 2020 passou a investigar dezenas de submissões com “baixo índice de similaridade, mas com padrões suspeitos de estrutura e terminologia”. A verificação revelou que parte dos textos havia sido alterada por meio de serviços comerciais de parafraseamento automático, cujo marketing prometia justamente “evitar a detecção de plágio”.
Como garantir a originalidade?
Editores de periódicos se veem agora diante de um dilema inédito: como garantir a originalidade de um artigo quando nem mesmo as melhores ferramentas de detecção conseguem identificar o plágio intelectual disfarçado por IA? Muitos editores relatam um aumento de casos “sombrios”, onde o texto é inédito, mas as ideias, a argumentação e até as referências seguem exatamente o mesmo roteiro de artigos publicados anteriormente.
A revisão por pares, nesse cenário, torna-se mais crítica do que nunca. Avaliadores experientes, que conhecem bem a literatura de determinada área, têm mais chances de perceber quando um artigo está apenas “reembalando” conceitos de forma superficial. Contudo, esse modelo também é falho: os revisores não têm sempre tempo ou ferramentas para fazer rastreamentos aprofundados.
Várias revistas já discutem a necessidade de implantar sistemas de rastreamento semântico e análise estilística, que possam cruzar padrões de escrita com bancos de dados conceituais e históricos. Entretanto, esses recursos ainda estão em estágio embrionário e têm alto custo operacional.
Parafraseamento, autoria e responsabilidade
A questão central não é se o texto foi gerado por IA ou por humanos, mas de quem são as ideias. A ética acadêmica exige que qualquer conceito, formulação teórica, estrutura metodológica ou argumento que não seja original seja atribuído de maneira explícita à sua fonte. Quando um autor utiliza um algoritmo para modificar um texto sem reconhecer a origem das ideias, está, objetivamente, cometendo plágio — ainda que nenhum trecho idêntico seja detectado.
Esse tipo de prática configura o que muitos pesquisadores têm chamado de “plágio semântico” ou “plágio de ideias reembaladas”, o que é especialmente perigoso em áreas de ciências sociais, humanidades e revisão de literatura, onde a originalidade do raciocínio é fundamental.
Propostas concretas
Diante desse cenário, algumas medidas podem e devem ser adotadas por pesquisadores e editores:
Para periódicos científicos:
Para pesquisadores:
Disputa entre a ética e o algoritmo
O avanço da tecnologia trouxe benefícios incontestáveis à ciência, mas também novos dilemas éticos que precisam ser enfrentados com maturidade, clareza e responsabilidade. O uso indevido de ferramentas de reescrita automática representa não apenas uma ameaça à originalidade textual, mas uma distorção grave da autoria científica. Quando o plágio é algoritmizado, ele se torna mais difícil de detectar, mas não menos nocivo.
Cabe às comunidades científicas, editoras, universidades e agências de fomento estabelecerem limites éticos claros, investir em novas formas de detecção e promover uma cultura de integridade científica que resista às tentações da automação irresponsável. A ciência só se sustenta se sua base for sólida — e essa base é a confiança. Confiança na autoria, na honestidade intelectual e no compromisso coletivo com o conhecimento legítimo.
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