Papel mais complexo do editor científico: da curadoria à gestão tecnológica — Et al. #345

O universo da edição científica está passando por uma profunda transformação: o papel do editor de periódicos, plataformas científicas e instituições de pesquisa já não se resume à curadoria de manuscritos, à verificação de linguagem ou à coordenação da revisão por pares. Em vez disso, essa personagem já traz para si competências que vão da ética de publicação à gestão de softwares, inteligência artificial e métricas de impacto.

Diversos fatores estruturais explicam a necessidade de repensar o papel do editor científico. Primeiro, a explosão no volume de produção científica: um estudo recente mostrou que o total de artigos indexados por bases como Scopus e WebofScience aumentou cerca de 47% entre 2016 e 2022, o que representa uma pressão significativa sobre as equipes editoriais e os fluxos de publicação.

Além disso, novas formas de publicação (acesso aberto, preprints, dados abertos), a internacionalização dos autores, a diversidade disciplinar crescente e o avanço tecnológico (ferramentas de IA, automação, análise de métricas) exigem que o editor tenha um leque muito mais amplo de competências.

Por fim, questões éticas, de reprodutibilidade, de conflitos de interesses e de integridade científica estão em primeiro plano: por exemplo, um estudo demonstrou que por volta de 3% dos periódicos analisados apresentavam taxas de conflitos de interesses (editores tratando submissões de colaboradores recentes) superiores a 10%. Diante desse cenário, os editores e os publishers precisam repensar funções, fluxos e competências.

Competências centrais

O editor precisa ter sólida literacia científica. Isso inclui entender a metodologia científica, avaliar desenho experimental, analisar dados, gráficos, figuras e determinar se o manuscrito está no escopo do periódico ou plataforma.

Também deve ter “inteligência intelectual” para saltar entre diferentes temas, compreender impactos e tendências emergentes e avaliar a relevância para a comunidade acadêmica ou para a sociedade.

De acordo com diretrizes da Associação Europeia de Editores Científicos (Ease) e de outras associações, o editor precisa estar atento a plágio, manipulação de dados, conflitos de interesse, autorias inapropriadas, práticas predatórias, entre outros processos, como a equidade no processo de revisão e a justiça no tratamento dos autores.

Com a digitalização crescente, o editor não atua apenas sobre o texto, mas sobre fluxos: gestão de sistemas de submissão/manuscrito, metadados, XML/HTML, plataformas de publicação, interoperabilidade de dados e uso de ferramentas de verificação automática (antiplágio, checagem de metadados, integridade de figura).

Além disso, devem compreender a aplicação de IA, automação de triagem e até de assistentes de edição que verificam linguagem ou dados — sem, porém, perder a supervisão crítica.

A curadoria agora está atrelada a públicos e divulgação, pois em um ambiente competitivo, com muitos periódicos e plataformas, o editor atua para escolher escopo, planejar números especiais, incentivar autores, cultivar revisores, definir indicadores de qualidade e visibilidade e monitorar métricas.

Também é necessário que ele tenha habilidades de comunicação, diplomacia, organização de fluxos e gestão de tempo, além de estar pronto para reconfigurar processos, lidar com surto de submissões (como observado na pandemia) e adaptar-se a modelos híbridos ou remotos.

Como preparar a próxima geração de editores?

Tradicionalmente, muitos editores eram pesquisadores que assumiam o cargo “por ocasião”. Hoje, faz sentido construir trajetórias mais estruturadas: formação em comunicação científica, editoração, tecnologias editoriais, ética em publicação.

Cursos, workshops e certificações, como os oferecidos por associações como a Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec Brasil) e a Associação Europeia de Editores Científicos (Ease) são recomendáveis. Mentorias, participação em conferências de publicação acadêmica e vivência nos sistemas de revisão e workflow editorial ajudam a desenvolver a familiaridade necessária.

Os aspirantes a editores devem passar por treinamentos em sistemas de gestão editorial, formatos de arquivo, XML, metadados, uso de IA de apoio, métricas de publicação, análise de dados bibliométricos. Isso pode ser feito via módulos práticos, laboratórios, estagiários em plataformas editoriais.

Também é fundamental preparar os futuros editores para lidarem com dilemas éticos — como conflitos de interesse, predatory publishing, revisores “fantasmas”, manipulação de figuras. Estudos recentes enfatizam que a simples existência de políticas não garante sua eficácia. Podem ser realizados cenários de casos, simulações de decisões editoriais difíceis e discussões de boas práticas.

Desafios e recomendações

De fato, os editores precisam estar preparados para inovar: pensar em formatos de publicação além do artigo tradicional (dados abertos, preprints, vídeos, resumos gráficos), em estratégias de engajamento de comunidade e em visibilidade internacional. Isso exige mindset de gestor, não apenas de revisor.

Também devem ser agentes de transformação nas suas instituições: capazes de articular políticas de acesso aberto, de curadoria de dados, de transparência, de internacionalização. Preparar-se para esses papéis significa desenvolver visão estratégica, habilidades de liderança e negociação.

Além disso, é útil haver programas de mentoria entre editores seniores e juniores, reuniões regulares de treinamento, troca de experiências internacionais.

A carga de trabalho da publicação científica está em ascensão, o que gera tensões em prazos, recrutamento de revisores e manutenção da qualidade. Uma recomendação é investir em workflows eficientes, triagem automatizada inicial, e na capacitação de revisores.

Embora automação e IA sejam aliadas importantes, o editor não pode delegar totalmente a “triagem por máquina”. A supervisão crítica é indispensável para garantir relevância, integridade e julgamento editorial.

Em um mercado editorial cada vez mais competitivo, o editor precisa colaborar com o publisher para definir modelo sustentável, escopo diferenciado, e visibilidade internacional.

A internacionalização exige que o profissional compreenda a diversidade linguística, cultura acadêmica diferente e legislação de publicação de diferentes países. Um esforço de formação de uma rede global de revisores e autores pode ser crucial.

Os editores precisam garantir que os dados sejam disponibilizados, que os manuscritos cumpram requisitos de reprodutibilidade e que as métricas tradicionais sejam complementadas por altmetrics e demais indicadores.

Além disso, devem experimentar formatos emergentes, como artigos incrementais, curadoria de dados, pré-registros e conteúdo digital multimídia.

A composição dos corpos editoriais e de revisores ainda apresenta desequilíbrios (por exemplo, sub-representação feminina), e por isso é essencial a elaboração de políticas para garantir diversidade, reduzir vieses e ampliar a inclusão.

Em síntese, o perfil do editor científico está evoluindo de um especialista em texto e fluxo de manuscritos para um gestor multifacetado: curador de ciência, guardião de ética, gestor tecnológico e estrategista de visibilidade. Portanto, investir em competências (tanto humanas como tecnológicas) é estratégico.

Preparar novas gerações significa oferecer programas de formação híbridos (ciência + edição + tecnologia + ética), fomentar a mentoria, cultivar redes de profissionais e criar uma cultura editorial aberta, adaptável e proativa.

Quem logar esse novo perfil estará em melhor condição para garantir que sua revista ou plataforma não apenas sobreviva, mas lidere — num ambiente de publicações científicas cada vez mais exigente, dinâmico e globalizado.

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(*) Fundada em 2000, a Zeppelini Publishers atua no segmento editorial técnico e científico, atendendo empresas e organizações e desenvolvendo estratégias para todas as áreas da produção de publicações impressas e online.

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