O paradoxo da autoria coletiva: como as revistas lidam com mega papers com mais de 100 autores? – Et al. #329

À medida que a ciência se torna cada vez mais colaborativa, interdisciplinar e internacional, cresce o número de artigos assinados por dezenas, centenas e até milhares de autores. Os chamados mega papers não são mais exceções: eles já representam uma nova fronteira nos modos de produção e divulgação do conhecimento científico.

Mas essa revolução quantitativa traz consigo um dilema qualitativo: como atribuir autoria de forma justa e transparente em artigos com centenas de colaboradores? E mais — como garantir responsabilidade ética, relevância curricular e integridade científica diante de tamanha coletividade?

Os mega papers se multiplicam principalmente em áreas que exigem infraestrutura e expertise massivos. Projetos como o Large Hadron Collider (LHC), o telescópio espacial James Webb, o Projeto Genoma Humano e os estudos clínicos globais da Covid-19 reúnem instituições de diversos países, envolvendo milhares de cientistas, engenheiros, analistas de dados e técnicos.

Nessas colaborações, cada pesquisador contribui com uma parte específica do projeto, e todas elas são essenciais para o resultado final. A publicação científica, então, se torna uma culminância coletiva — e não uma narrativa individual.

Um exemplo emblemático foi a publicação, em 2015, do artigo que relatava a descoberta do bóson de Higgs. O texto foi assinado por mais de 5 mil autores, provenientes de 300 instituições. A lista de nomes ocupava dezenas de páginas, obrigando as revistas científicas a reverem seus formatos editoriais.

Do indivíduo ao coletivo

Historicamente, a autoria científica era concebida como um reflexo direto da contribuição intelectual ao artigo — da formulação da hipótese à redação final. Esse modelo se sustentava bem em ciências humanas ou naturais do século 20, quando os trabalhos eram frequentemente realizados por poucos pesquisadores.

Porém, no contexto dos big science projects, essa lógica entra em colapso. Em muitos mega papers, há autores que nunca leram o artigo final, e outros que atuaram apenas em fases iniciais ou técnicas do estudo. Ainda assim, todos são listados como coautores. Isso gera um paradoxo: ao diluir a autoria, corre-se o risco de diluir também a responsabilidade científica.

O que significa ser autor?

O Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (ICMJE) estabelece quatro critérios fundamentais para definir um autor:

  1. Contribuição substancial à concepção, aquisição ou análise dos dados.
  2. Participação na redação ou revisão crítica do conteúdo.
  3. Aprovação da versão final.
  4. Comprometimento com a responsabilidade pelo conteúdo do artigo.

A grande maioria dos mega papers, porém, desafia esses critérios. Nem todos os autores participam da revisão crítica, nem estão aptos a responder por todo o conteúdo. Em resposta a isso, surgiram debates sobre modelos alternativos de autoria.

Revistas de prestígio como Nature, Science e The Lancet já enfrentaram esse desafio em diversas frentes. Algumas das principais estratégias adotadas incluem:

Declarações de contribuição individual (CRediT Taxonomy): O modelo CRediT (Contributor Roles Taxonomy) define 14 funções distintas, como “curadoria de dados”, “análise formal”, “visualização”, “metodologia”, “supervisão”, “redação”, entre outras. Assim, cada autor especifica exatamente o que fez — o que confere mais transparência e impede inferências equivocadas sobre mérito ou envolvimento.

Assinatura coletiva com apêndice nominal: Alguns periódicos optam por listar o nome da colaboração (ex.: “Atlas Collaboration”) como autor oficial, com todos os nomes dos participantes incluídos em apêndice suplementar. Isso reduz o impacto visual da lista e sinaliza que a autoria é institucional, e não pessoal.

Classificação entre autores e colaboradores: Em alguns casos, há distinções entre “autor pleno” e “colaborador técnico” ou “membro do consórcio”. Isso ajuda a evitar a inflacionamento de currículos e delimita melhor quem realmente participou das decisões intelectuais do trabalho.

Impactos éticos e acadêmicos

Com a multiplicação dos mega papers, cresce o risco de “autoria inflacionada”. Pesquisadores jovens, por exemplo, podem constar como coautores de dezenas de artigos sem ter atuado diretamente em sua redação ou análise. Em países onde o número de publicações é critério central para bolsas, promoções e concursos públicos, isso pode gerar distorções graves.

Nesse contexto, quem responde por um erro ou por má conduta científica em um artigo com 300 autores? A pulverização da autoria pode enfraquecer os mecanismos de responsabilização. Daí a importância de sistemas que distingam claramente os autores principais e responsáveis pela integridade metodológica e ética do trabalho.

A ideia de que “milhares de cientistas assinam algo que não leram” pode alimentar críticas à credibilidade da ciência e ao rigor do processo editorial. A transparência sobre as funções de cada autor é essencial não apenas para a comunidade científica, mas também para o público e os financiadores.

Reflexões e caminhos possíveis

A ciência mudou, e os critérios de autoria precisam acompanhar essa transformação. Alguns caminhos viáveis incluem revisar sistemas de avaliação acadêmica, para valorizar qualidade e contribuição específica, e não apenas número de publicações; ampliar o uso de taxonomias de contribuição, como o CRediT, para todas as áreas do conhecimento.

Da mesma forma, pode-se criar categorias diferenciadas entre autores principais, colaboradores técnicos e responsáveis por supervisão; e estimular a alfabetização científica sobre autoria, para que estudantes e pesquisadores saibam desde cedo o que significa ser coautor de um trabalho.

O paradoxo da autoria coletiva desafia nossas ideias mais básicas sobre o que significa produzir ciência. Em vez de reforçar noções individualistas de mérito, os mega papers nos convidam a enxergar a ciência como um ecossistema colaborativo, onde o conhecimento é construído de forma descentralizada, em rede, por múltiplas mãos e mentes.

Nesse cenário, o prestígio acadêmico precisa ser construído não apenas pela quantidade de artigos, mas pela qualidade da contribuição e pela capacidade de cooperação ética e transparente. A autoria científica do século 21, mais do que uma assinatura, deve ser um pacto de responsabilidade intelectual e integridade coletiva.

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