O debate sobre o futuro da avaliação Qualis no Brasil não é apenas uma questão técnica de classificação de periódicos ou artigos; trata-se de um reposicionamento estratégico da própria política editorial brasileira no sistema de pós-graduação e ciência.
A decisão da Capes de substituir o modelo tradicional, centrado no Qualis Periódicos, por um sistema baseado na classificação de artigos tem implicações profundas tanto para a produção científica nacional quanto para os próprios periódicos que compõem esse ecossistema.
Desde os anos 1990, o Qualis Periódicos foi o principal instrumento usado pela Capes para estratificar e avaliar a qualidade da produção científica dos programas de pós-graduação. Sua lógica, baseada em faixas (A1 a C), ofereceu uma métrica clara e padronizada que orientou autores, programas e editores.
Contudo, esse sistema se mostrou limitado: a classificação era atribuída ao periódico como um todo, sem distinguir a qualidade real de cada artigo. Assim, trabalhos medianos publicados em periódicos de alto estrato recebiam a mesma “valoração” que artigos de alta relevância, enquanto publicações sólidas em revistas emergentes ou regionais eram subestimadas.
Além disso, a disparidade de critérios entre áreas gerava distorções e incentivava práticas questionáveis, como a migração em massa de submissões para certos títulos “bem ranqueados”, muitas vezes em detrimento da diversidade editorial brasileira.
A criação do Qualis Referência, no quadriênio 2017–2020, foi uma tentativa de corrigir inconsistências e de oferecer critérios mais técnicos e transparentes. Porém, manteve-se a estrutura centrada em periódicos.
O novo movimento, consolidado em 2024 e com vigência a partir do quadriênio 2025–2028, representa um passo adiante: pela primeira vez, o sistema brasileiro desloca o eixo da avaliação para o mérito do artigo científico.
A lógica da classificação de artigos
A Capes aprovou a adoção de três possíveis procedimentos de classificação, que poderão ser combinados por área de conhecimento. Isso significa que não haverá um modelo único, mas sim uma pluralidade de metodologias, respeitando a heterogeneidade disciplinar.
Em áreas das ciências exatas, por exemplo, pode prevalecer a análise bibliométrica clássica (citações, impacto em bases internacionais), enquanto em humanidades poderão ter maior peso fatores como originalidade, relevância social e impacto em políticas públicas. Essa flexibilidade tem o mérito de reconhecer especificidades, mas também traz riscos de assimetria e falta de comparabilidade entre campos.
Para as revistas, a mudança é significativa: o título deixa de ser, por si só, a unidade de valor. Agora, cada artigo precisa mostrar sua relevância. Isso transforma os incentivos editoriais. O prestígio do periódico passa a estar cada vez mais associado à sua capacidade de oferecer processos editoriais rigorosos, com revisão por pares de qualidade, metadados confiáveis, integridade científica e abertura a métricas múltiplas.
Impactos para editores e publishers
A transição implica mudanças concretas no dia a dia das revistas. Em primeiro lugar, a gestão de metadados torna-se decisiva: erros em DOI, afiliações, Orcid ou ausência de indexação em bases internacionais podem comprometer a avaliação do artigo.
Em segundo lugar, cresce a necessidade de adotar boas práticas de ciência aberta, como exigir declarações de disponibilidade de dados, incentivar repositórios confiáveis, registrar versões de código e integrar métricas de uso e de impacto social.
Em terceiro lugar, os editores precisarão lidar com a pressão por transparência de avaliação, seja por meio da publicação de pareceres (open peer review), seja pela adoção de tecnologias que evidenciem a integridade do processo editorial.
Esse novo contexto também traz riscos. A busca por métricas de impacto pode estimular comportamentos oportunistas, como o fracionamento de resultados em múltiplos artigos (salami slicing), o aumento artificial de autocitações ou estratégias de manipulação de visibilidade em redes sociais acadêmicas.
Além disso, o modelo pode acentuar desigualdades: revistas nacionais que não dispõem de recursos para infraestrutura tecnológica avançada correm o risco de ficar à margem, enquanto editoras internacionais com grande capacidade de oferecer métricas, dashboards e interoperabilidade podem ampliar sua hegemonia.
Reposicionamento
Por outro lado, a transição abre oportunidades inéditas para periódicos brasileiros. A ênfase no artigo pode beneficiar revistas que historicamente ficaram em estratos inferiores, mas que apresentam processos de avaliação sérios e produzem ciência relevante. Se souberem se adaptar, essas revistas podem conquistar maior reconhecimento, sobretudo em suas áreas específicas.
Para isso, será necessário investir em três frentes principais:
Infraestrutura tecnológica: garantir interoperabilidade com Crossref, Orcid, ROR, repositórios de dados e sistemas de métricas.
Política editorial robusta: adotar diretrizes claras de ciência aberta, revisão transparente, uso responsável de IA generativa e mecanismos de correção e retratação visíveis.
Profissionalização da gestão: capacitar equipes editoriais, reduzir tempos de processamento, monitorar integridade estatística e oferecer indicadores de desempenho para a comunidade científica.
Nesse cenário, o papel dos editores e publishers transcende a simples mediação de submissões. Eles passam a atuar como curadores da qualidade científica, responsáveis por criar condições para que cada artigo publicado seja avaliado de forma justa, visível e confiável. Em vez de correr atrás de um estrato Qualis, será preciso cultivar uma cultura editorial orientada por integridade, transparência e impacto.
Por isso, podemos imaginar três cenários distintos para os próximos anos. No mais virtuoso, as revistas brasileiras adotam práticas de ciência aberta e métricas diversificadas, conquistando legitimidade e até liderança em determinados campos. Num segundo panorama, a fragmentação de critérios entre áreas e a falta de clareza metodológica geram inconsistências, com pouco avanço real em relação ao sistema anterior. No pior cenário, a busca por impacto internacional aumenta barreiras econômicas, reforça desigualdades regionais e compromete a diversidade editorial do país.
Reposicionamento
Evidentemente, o destino da política editorial brasileira dependerá da capacidade de adaptação dos editores. O tempo é curto: revistas e programas precisam garantir a correção dos dados submetidos à Capes. Mais do que isso, devem assumir um reposicionamento estratégico.
O Qualis, tal como o conhecemos, está sendo substituído por um sistema que exige evidências no nível do artigo. Revistas que se anteciparem, investindo em metadados, ciência aberta, transparência e profissionalização, não apenas sobreviverão a essa mudança, mas atuarão como protagonistas de um ecossistema científico mais robusto, inclusivo e internacionalmente competitivo.
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