Inteligência artificial na triagem editorial: eficiência, riscos e dilemas éticos — Et al. #342

Diante de um cenário de sobrecarga de submissões e pressão por prazos mais curtos, cada vez mais os editores se veem compelidos a buscar apoio tecnológico para manter a qualidade e a integridade das publicações. Eles encontraram na inteligência artificial uma forma de acelerar processos, incluindo a triagem editorial. Se por um lado a IA se transformou em ferramenta de apoio, de outro desencadeou intensos debates éticos e epistemológicos.

O crescimento desse fenômeno é global, conforme mostram diversas pesquisas. De acordo com uma das maiores editoras do mundo, o volume de artigos submetidos a revistas científicas aumentou mais de 40% entre 2019 e 2023, impulsionado pela facilidade de submissão digital e pelo aumento da produção científica em países emergentes.

A triagem editorial, ou desk review, é a primeira etapa do processo de publicação, quando o editor avalia se o manuscrito está dentro do escopo da revista, se atende às normas técnicas e se apresenta qualidade mínima para seguir à revisão por pares.

Trata-se de uma etapa estratégica: decisões precipitadas podem levar à exclusão de trabalhos inovadores, enquanto a ausência de filtros sobrecarrega revisores com manuscritos frágeis. A triagem funciona, portanto, como uma “porta de entrada” para o sistema científico.

Nos últimos anos, com o volume crescente de submissões e a escassez de revisores qualificados, esse estágio passou a demandar soluções de automação capazes de reduzir o tempo de resposta sem comprometer o julgamento editorial.

Diversas editoras internacionais já incorporam algoritmos para tarefas específicas. Ferramentas como iThenticate e Turnitin são amplamente utilizadas para detecção de plágio e autoplágio, oferecendo relatórios detalhados sobre similaridades textuais.

Outras editoras vêm testando modelos preditivos de IA que classificam manuscritos segundo o grau de aderência ao escopo da revista, utilizando dados históricos de publicações aceitas e rejeitadas.

O Proofig e o ImageTwin, por sua vez, identificam manipulações e duplicações de imagens científicas, um tipo de fraude que se tornou recorrente em áreas biomédicas.

Outros sistemas, como o Penelope.ai, realizam checagens automáticas de metadados, referências e adequação às normas editoriais, emitindo alertas sobre inconsistências antes que o artigo chegue ao editor.

Os benefícios potenciais são evidentes. A IA permite maior eficiência no fluxo editorial, com respostas iniciais mais rápidas aos autores e redução da carga de trabalho sobre revisores e editores.

Além disso, pode contribuir para uma uniformidade de critérios, mitigando variações decorrentes da subjetividade humana e padronizando aspectos técnicos, como referências e formatação. Em um ecossistema editorial global cada vez mais competitivo, a automação pode representar um ganho de produtividade e um fator de sobrevivência para revistas com estruturas reduzidas e alta demanda.

Viés algorítmico

Contudo, o entusiasmo pela automação não deve obscurecer os riscos e dilemas éticos. Um dos principais desafios é o viés algorítmico: sistemas de IA são treinados com base em dados históricos, o que pode reproduzir e até amplificar desigualdades preexistentes.

Se um algoritmo aprende que artigos de determinadas regiões, idiomas ou estilos de escrita têm maior taxa de rejeição, poderá perpetuar uma forma invisível de exclusão científica. Outro problema é a falta de transparência: muitos softwares operam como “caixas-pretas”, sem que editores saibam exatamente quais critérios influenciam a decisão automática.

Há também o risco de exclusão de trabalhos inovadores, que, por não seguirem padrões tradicionais de estrutura ou vocabulário, podem ser erroneamente classificados como “fora do escopo” ou “inadequados”.

Casos concretos ilustram essas tensões. Em 2023, uma editora britânica enfrentou críticas após testar um sistema automatizado que avaliava a “probabilidade de aceitação” de artigos com base em métricas de linguagem e estrutura. Pesquisadores apontaram que o modelo tendia a penalizar manuscritos de autores não nativos de inglês e de países em desenvolvimento.

Outra grande editora adotou diretrizes de transparência, estabelecendo que nenhuma decisão de rejeição pode ser tomada unicamente por sistemas automatizados, sem revisão humana.

As repercussões entre pesquisadores têm sido diversas. Parte da comunidade reconhece os ganhos de eficiência e qualidade técnica proporcionados pela IA, especialmente em tarefas repetitivas. Contudo, cresce também o movimento crítico que alerta para a desumanização do processo editorial e a possível erosão da confiança entre autores e revistas.

Em fóruns acadêmicos e redes sociais, multiplicam-se relatos de autores que receberam rejeições sumárias baseadas em pareceres automáticos sem justificativas claras — o que reforça a importância da transparência e supervisão humana.

Diante desse cenário, surgem boas práticas recomendadas. A supervisão humana deve permanecer central em todas as etapas decisórias; algoritmos precisam ser auditáveis e explicáveis, com relatórios de transparência acessíveis aos editores e, quando possível, aos autores.

Além disso, é recomendável que as revistas publiquem políticas editoriais explícitas sobre o uso de IA, esclarecendo seu papel na triagem e nos processos de revisão. A adoção de comitês de ética editorial e de auditorias independentes pode contribuir para mitigar riscos e aumentar a legitimidade dos sistemas híbridos.

Modelo generativo

A integração da IA generativa — capaz de resumir textos, sugerir pareceres iniciais e identificar inconsistências de conteúdo — aponta para uma nova fase da triagem semiautomática.

Modelos generativos podem ajudar editores a priorizar manuscritos, mas não devem substituir o julgamento humano, que continua essencial para avaliar mérito científico, originalidade e relevância social.

O futuro mais promissor parece residir nos sistemas híbridos humano-máquina, em que a IA amplifica a capacidade analítica do editor, sem esvaziar seu papel crítico e curatorial.

Em última análise, a IA representa uma ferramenta de apoio poderosa, mas não um substituto para a responsabilidade editorial.

O equilíbrio entre eficiência tecnológica e discernimento humano será o verdadeiro teste de maturidade da comunidade científica na era da automação editorial. O desafio não é escolher entre humanos ou máquinas — e sim construir um sistema em que ambos colaborem para preservar o rigor, a ética e a diversidade que sustentam a credibilidade da ciência.

Sugestão para os editores

A Zeppelini propõe uma prática inovadora para otimizar o processo editorial: utilizar uma análise inicial por inteligência artificial para gerar um parecer sobre o conteúdo dos artigos submetidos. Esse parecer, elaborado pela IA, seria enviado aos pareceristas humanos junto com o manuscrito, funcionando como um suporte auxiliar para a tomada de decisão.

O objetivo dessa prática não é realizar uma revisão linguística, estrutural ou gramatical do artigo, mas sim avaliar a contribuição científica, o rigor metodológico e a originalidade do trabalho.

A análise gerada pela IA oferece uma triagem preliminar criteriosa, auxiliando os avaliadores humanos em aspectos como a identificação de pontos fortes e possíveis deficiências do manuscrito.

Importante destacar que o parecer gerado pela IA não substitui o julgamento crítico dos avaliadores humanos nem serve como veredito final. Ele é uma ferramenta complementar, que contribui para agilizar e padronizar o processo editorial, oferecendo subsídios para a decisão do editor e dos revisores em sistemas de avaliação, como o duplo-cego.

Essa abordagem visa fortalecer a eficiência e a qualidade do processo de triagem editorial, respeitando o papel insubstituível do olhar humano crítico e criterioso nas decisões finais. Ao aplicar essa prática, os editores podem acelerar o fluxo de avaliação enquanto mantêm o foco nos aspectos mais relevantes das publicações científicas.

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(*) Fundada em 2000, a Zeppelini Publishers atua no segmento editorial técnico e científico, atendendo empresas e organizações e desenvolvendo estratégias para todas as áreas da produção de publicações impressas e online.

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