Edição científica e contexto local: como promover conhecimento relevante para realidades regionais? – Et al. #324

A ciência é, por excelência, um empreendimento humano destinado a ampliar os horizontes do saber e a oferecer respostas aos desafios da sociedade. No entanto, embora sua vocação seja universal, os contextos nos quais o conhecimento é produzido e aplicado são, inevitavelmente, locais.

Nesse paradoxo entre a universalidade da ciência e a particularidade das realidades vividas, algumas questões fundamentais se sobrepõem: como a edição científica pode valorizar e fomentar pesquisas que dialoguem diretamente com os contextos sociais, econômicos e ambientais regionais? Mais ainda, como fazer isso sem perder de vista a legitimidade e o reconhecimento no cenário acadêmico internacional?

Estas perguntas exigem respostas estratégicas e éticas. A ciência, quando sensível ao território, pode se tornar uma poderosa ferramenta de transformação social. Para isso, os periódicos científicos precisam assumir um papel mais ativo na promoção de uma ciência comprometida com o impacto local e com a inclusão de vozes historicamente marginalizadas nos processos de produção do saber.

Centralidade do território

É impossível desvincular o conhecimento científico dos contextos nos quais ele é produzido. O território influencia a formulação de problemas, a escolha de metodologias, o tipo de dados coletados e a forma como os resultados são interpretados. Um estudo sobre os efeitos da mudança climática na agricultura, por exemplo, deve considerar as especificidades de solo, o regime hídrico e as práticas agrícolas locais. Sem isso, a pesquisa corre o risco de ser genérica, imprecisa e, portanto, ineficaz.

Tomemos como exemplo os estudos sobre saneamento básico em comunidades ribeirinhas da Amazônia. Pesquisas realizadas com base nos modelos urbanos do Sudeste tendem a ignorar a geografia fluviátil, a escassa presença do Estado e a organização sociocultural dessas comunidades. Nesse sentido, levantamentos contextualizados produzem dados mais precisos e fortalecem o vínculo entre ciência e cidadania.

Agentes ativos de transformação

Os periódicos acadêmicos exercem uma função vital na validação, circulação e consagração do conhecimento científico. Por isso mesmo, eles podem – e devem – atuar como catalisadores da produção de ciência voltada para a resolução de problemas locais. Infelizmente, muitos periódicos ainda seguem critérios que privilegiam a exportabilidade do conhecimento, em detrimento de sua aplicabilidade concreta.

Para romper com esse modelo, algumas ações são fundamentais:

Criação de seções temáticas sobre conhecimento aplicado: Revistas científicas podem instituir seções específicas para pesquisas voltadas a contextos regionais, destacando não apenas a originalidade teórica, mas também a pertinência social. Isso conferiria visibilidade a estudos muitas vezes negligenciados por não atenderem a critérios considerados “globais”.

Diversificação dos conselhos editoriais: A presença de editores e pareceristas com vivência e experiência em diferentes territórios pode enriquecer as avaliações e reduzir vieses centralizadores. A diversidade regional nos conselhos editoriais promove maior sensibilidade às complexidades locais e amplia o alcance da revista.

Valorização de metodologias participativas e interdisciplinares:
Estudos que envolvem populações locais, saberes tradicionais ou práticas comunitárias são, por vezes, desvalorizados por parecerem “menos científicos”. Os periódicos podem reverter essa lógica ao reconhecer o valor epistêmico dessas abordagens.

Publicação bilíngue ou multilíngue: A tradução dos artigos para idiomas locais e internacionais pode democratizar o acesso à ciência e permitir que os resultados retornem às comunidades de origem, além de facilitar a leitura por pesquisadores estrangeiros interessados em estudos contextuais.

Conciliar o local e o global

A ideia de que a ciência produzida com foco local é “menos relevante” ou “menos sofisticada” revela um preconceito arraigado no sistema de avaliação científica global. Contudo, esse pensamento não se sustenta à luz de experiências bem-sucedidas.

A revolução verde, por exemplo, foi viabilizada por pesquisas agronômicas profundamente enraizadas em contextos específicos de clima e cultura agrícola. Da mesma forma, estratégias de prevenção de doenças como o zika e a dengue foram desenvolvidas com base em estudos conduzidos em regiões tropicais específicas, sendo depois incorporadas em protocolos globais de saúde pública.

Ou seja, a ciência local não é um “subproduto” da ciência global — ela pode, inclusive, liderá-la, desde que tenha espaço e reconhecimento. Para isso, é preciso reconfigurar as métricas de impacto. Um artigo que muda a política pública de saneamento em uma cidade amazônica deve ser tão valorizado quanto aquele que é citado centenas de vezes em outros artigos internacionais. Afinal, o impacto social direto também é uma forma de excelência científica.

Exemplos inspiradores

Algumas revistas científicas e instituições acadêmicas já vêm adotando práticas mais alinhadas a essa visão. A Revista Brasileira de Educação Ambiental, por exemplo, tem valorizado estudos de caso em comunidades tradicionais, agroecologia e ensino contextualizado. No México, a Revista Mexicana de Biodiversidad publica artigos em espanhol e inglês, incentivando tanto a difusão local quanto a internacionalização.

Na África, iniciativas como o African Journals Online (AJOL) reúnem centenas de periódicos comprometidos com o desenvolvimento regional e com a inclusão de vozes africanas na ciência. Como se vê, é possível ampliar o alcance e o prestígio científico sem renunciar ao compromisso com as realidades locais.

Entretanto, a mudança não depende apenas dos periódicos. Ela exige uma reformulação profunda das políticas de fomento e avaliação científica. As agências de financiamento devem adotar critérios que considerem o impacto territorial das pesquisas. As universidades precisam incentivar a publicação em revistas locais ou regionais, reconhecendo seu valor nos currículos dos pesquisadores. E os próprios cientistas devem repensar suas prioridades, equilibrando a busca por prestígio com o dever social de transformar a realidade que os cerca.

Além disso, a ciência aberta, que preconiza o compartilhamento de dados e o acesso irrestrito às publicações, pode ser aliada estratégica nesse processo. Ela permite que os resultados de pesquisas regionais cheguem a diferentes públicos, fomentando a transparência, a interdisciplinaridade e a colaboração entre saberes acadêmicos e populares.

Mudança de paradigma

A edição científica sensível ao contexto local representa não apenas uma inovação editorial, mas uma mudança de paradigma na forma como concebemos e utilizamos o conhecimento. Ao promover a valorização de realidades regionais, os periódicos contribuem para uma ciência mais plural, equitativa e socialmente relevante.

A tensão entre a visibilidade internacional e a pertinência local não deve ser vista como um obstáculo, mas como uma oportunidade de construir pontes para um conhecimento verdadeiramente transformador.

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(*) Fundada em 2000, a Zeppelini Publishers atua no segmento editorial técnico e científico, atendendo empresas e organizações e desenvolvendo estratégias para todas as áreas da produção de publicações impressas e online.

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