A ciência foi edificada por registros. Desde as cartas de Galileu a seus contemporâneos, passando pelos diários de laboratório de Marie Curie até os artigos formais de Einstein e Watson & Crick, a tradição de “relatar” descobertas moldou os contornos do conhecimento validado.
Mas no século XXI, em um cenário marcado pela complexidade computacional, pela massificação de dados e por algoritmos cada vez mais sofisticados, a forma de comunicar ciência está mudando. Hoje, não basta mais contar a história de uma descoberta — é preciso mostrar como ela foi construída, linha por linha, código por código.
Este novo paradigma tem nome: ciência aberta e reprodutível. E não se trata apenas de uma diretriz ética ou filosófica, mas de uma exigência crescente dos principais periódicos científicos do mundo. Diversas revistas estão na vanguarda de uma nova era editorial, em que não se publica apenas um artigo, mas um pacote completo de ciência — contendo código-fonte, banco de dados, documentação técnica, scripts de análise e repositórios públicos. É uma transição que exige uma nova postura dos pesquisadores, uma nova infraestrutura das revistas e uma nova cultura no ecossistema da ciência.
Essa virada editorial surgiu como resposta direta a um problema que corrói a credibilidade da ciência contemporânea: a crise da reprodutibilidade. Estudos emblemáticos, como o Reproducibility Project em psicologia e a revisão da Amgen sobre pesquisas biomédicas, revelaram que grande parte dos experimentos publicados não pode ser replicada por outros pesquisadores — um alerta vermelho para a confiabilidade do conhecimento científico. Quando códigos estão ausentes, dados são inacessíveis e métodos são vagos, a ciência deixa de ser verificável e se aproxima perigosamente do dogma.
Por isso, revistas comprometidas com a ciência reprodutível passaram a exigir transparência radical. Um estudo que afirma descobrir um novo padrão genético ou comportamento social precisa ser acompanhado de todos os meios que permitam a outros cientistas reproduzirem seus passos — como repositórios no GitHub ou Zenodo, notebooks Jupyter, containers Docker, instruções de instalação e dados brutos abertos.
A ideia é que qualquer cientista, em qualquer parte do mundo, possa baixar os arquivos, executar os scripts e chegar aos mesmos resultados. E, se não conseguir, a falha também vira conhecimento. Esse é o espírito da ciência: não basta publicar para ser verdade, é preciso poder provar novamente.
Mas esse novo modelo, embora progressista, não está isento de críticas ou dilemas práticos profundos. Em primeiro lugar, nem todos os pesquisadores têm familiaridade com ferramentas computacionais avançadas ou com boas práticas de programação. Muitos são formados em áreas onde o foco ainda é majoritariamente textual. Assim, a exigência de código bem documentado, modular e reprodutível pode excluir talentos ou gerar desigualdades, sobretudo em países em desenvolvimento ou instituições com infraestrutura limitada.
Além disso, surgem questões éticas importantes: como garantir a privacidade de participantes quando se exige abertura total dos dados? Como preservar direitos autorais e propriedade intelectual quando códigos complexos são compartilhados publicamente? E mais: até que ponto os revisores estão capacitados para julgar a qualidade de um script ou a integridade de um ambiente computacional?
O tradicional peer review, centrado na avaliação textual e metodológica, precisa evoluir — incorporando revisores técnicos, ferramentas de execução automatizada de código (como Binder, Code Ocean ou RunMyCode), e até novas métricas de impacto baseadas em uso e replicação, e não apenas em citações.
A ascensão da ciência aberta também altera o próprio conceito de autoria científica. Em projetos colaborativos com dezenas de contribuintes — desde quem coleta dados até quem escreve os scripts ou monta os dashboards interativos —, torna-se cada vez mais difícil definir quem é o “autor principal”. Modelos como o CRediT (Contributor Roles Taxonomy) tentam mapear melhor as contribuições, mas o sistema continua longe de refletir com justiça a complexidade do fazer científico digital.
Por outro lado, o movimento em favor da ciência reprodutível também abre portas poderosas para a democratização do conhecimento. Em vez de esconder metodologias atrás de paywalls ou depender da boa vontade de autores para “compartilhar sob solicitação”, agora qualquer pesquisador, estudante ou jornalista pode acessar os bastidores do estudo — e analisá-los, criticá-los ou melhorá-los. Essa abertura permite reinterpretações, meta-análises, detecção de erros e até o reaproveitamento de ferramentas e bases de dados para fins diversos. A ciência torna-se mais transparente, colaborativa, dinâmica e interconectada.
No entanto, o sucesso dessa revolução depende de um compromisso coletivo. Instituições de pesquisa precisam oferecer treinamento em ciência de dados e boas práticas de programação. Agências de fomento devem financiar não apenas a pesquisa em si, mas também os esforços de documentação e reprodutibilidade.
As revistas científicas precisam investir em infraestruturas tecnológicas robustas e repensar suas métricas de avaliação. E os próprios cientistas devem adotar uma mentalidade de abertura, entendendo que partilhar métodos não enfraquece sua autoria — pelo contrário, amplia seu impacto e confiabilidade.
Em última análise, a transição da carta ao código-fonte é um símbolo do tempo em que vivemos: um tempo em que a ciência não pode mais ser feita a portas fechadas. Em uma sociedade digitalizada, acelerada e polarizada, a confiabilidade da ciência passa pela sua capacidade de se mostrar, se testar e se refazer.
O código não é mais um detalhe técnico; é parte da verdade científica. E nesse novo mundo, publicar significa, acima de tudo, permitir que outros possam caminhar pelo mesmo caminho — e, quem sabe, chegar mais longe.
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