Ciência sob sanção: os efeitos invisíveis das restrições econômicas nas colaborações e publicações científicas — Et al. #344

Nos últimos anos, a geopolítica impôs à ciência uma fronteira que não aparece nos mapas, mas se manifesta nos fluxos de dados, nas conferências e nas submissões editoriais. As sanções econômicas internacionais — bloqueios financeiros, restrições bancárias e embargos tecnológicos — criadas para pressionar governos, acabaram por afetar também pesquisadores, universidades e revistas científicas.

O que começou como uma ferramenta de dissuasão econômica e diplomática, especialmente a partir das ações globais promovidas pelo atual governo dos Estados Unidos, já colocou em xeque um princípio basilar da comunidade científica: a universalidade do conhecimento.

O impacto é mais profundo do que parece. Em diversos países sob sanção, cientistas têm enfrentado obstáculos para pagar taxas de publicação, participar de congressos internacionais e até mesmo acessar plataformas de submissão que operam sob legislações restritivas.

Editores, por sua vez, se veem diante de dilemas éticos e legais: aceitar artigos de instituições bloqueadas pode configurar violação de sanções; rejeitá-los, no entanto, representa uma forma de censura científica. Nesse vácuo normativo, a neutralidade da ciência é corroída por medidas políticas que raramente consideram suas consequências no campo da pesquisa.

Até mesmo iniciativas de acesso aberto, que não envolvem pagamentos diretos, já enfrentaram questionamentos sobre “cooperação indevida” com países sancionados. Assim, a ciência, que deveria ser o espaço do diálogo global, é arrastada para a lógica da exclusão.

Essas restrições limitam a produção científica local e empobrecem o conjunto do conhecimento mundial. A perda de dados, a interrupção de parcerias e a exclusão de pesquisadores talentosos de redes internacionais reduzem a diversidade epistemológica e comprometem a capacidade coletiva de enfrentar desafios planetários, como pandemias e mudanças climáticas. Em última instância, sanções econômicas acabam se convertendo em sanções epistêmicas.

Apartheid científico

Estudos mostram que sanções econômicas têm efeitos devastadores sobre a cooperação científica internacional, conforme deixou claro o artigo Geo‑political conflicts, economic sanctions and international knowledge flows (Makkonen & Mitze, 2021), publicado na plataforma arXiv. Foram analisados os dados de mais de 500 mil publicações e verificou-se que, entre a União Europeia e a Rússia, após as sanções de 2014, as taxas de copublicação bilateral caíram significativamente, variando de 15% a 70%, dependendo do controle.

Também existe literatura específica sobre “sanções à ciência” ou “cooperação científica sob sanções”, como o estudo The right to science in the context of the deformation of the international law‑order under sanctions (Shugurov & Pechatnova), publicado na plataforma RCSI Journals. O texto afirma que medidas restritivas em cooperação científica constituem uma forma de limitação ao direito à ciência.

Já o artigo Economic sanctions and science in Russia (Dezhina, 2015) apontou que exportações de equipamentos e apoio externo tecnologia, incluindo materiais e financiamentos, foram impactados pelas sanções entre países, conforme o Ideas/RePEc, índice central de pesquisas em economia e finanças.

Esses dados revelam como a burocracia financeira se sobrepõe à liberdade intelectual. Além disso, a situação é agravada pelo papel ambíguo das grandes editoras. Empresas com sede em países sancionadores precisam cumprir rigorosamente suas legislações nacionais, sob pena de sofrer penalidades severas. Contudo, ao fazê-lo, reproduzem uma forma de apartheid científico que contraria os princípios da ciência aberta e as recomendações de organismos internacionais, como a Unesco.

Do ponto de vista ético, o dilema é perturbador. A ciência se apresenta como uma linguagem universal, mas seu exercício depende de infraestruturas econômicas globalizadas — contas bancárias, plataformas digitais, sistemas de pagamento — sujeitas a interesses políticos.

Portanto, é legítimo restringir a publicação de um artigo científico por razões de Estado? A quem pertence o conhecimento gerado por pesquisadores que, embora isolados por sanções, continuam produzindo evidências relevantes para a humanidade? Ao negar-lhes espaço, a comunidade científica não estaria violando seu próprio ideal de universalidade?

Invisibilidade acadêmica

Não é difícil prever as consequências desse fechamento. A fragmentação da ciência global cria zonas de invisibilidade acadêmica, dificultando a avaliação por pares e enfraquecendo a integridade dos sistemas de indexação.

Além disso, fomenta a emergência de circuitos paralelos de publicação — às vezes pouco transparentes — em busca de escapar das amarras diplomáticas. O risco é o surgimento de uma “geopolítica da ciência”, na qual a validade do conhecimento depende do passaporte de quem o produz.

Diante desse cenário, editores, sociedades científicas e agências de fomento precisam adotar uma postura mais assertiva. É urgente criar mecanismos neutros de comunicação científica que não dependam de intermediários financeiros sujeitos a sanções.

Plataformas descentralizadas baseadas em tecnologias abertas, consórcios editoriais entre universidades e políticas institucionais de exceção humanitária podem garantir que pesquisadores afetados continuem a contribuir com o avanço do conhecimento.

Mais do que nunca, é preciso reafirmar que a ciência é um bem comum da humanidade — e, como tal, deve estar acima das disputas econômicas. O que está em jogo não é apenas o direito de publicar, mas o direito de existir como parte de uma comunidade global de saber.

Se as sanções servem para isolar regimes, não deveriam isolar ideias. Preservar a integridade da colaboração científica internacional é, portanto, um ato político — não de resistência a governos, mas de fidelidade à própria essência da ciência: o diálogo, a cooperação e a liberdade de pensar sem fronteiras.

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