Ciência nas bordas: como revistas acadêmicas podem amplificar vozes indígenas, quilombolas e periféricas — Et al. #334

Embora a ciência tenha se consolidado como uma das principais ferramentas de explicação e transformação do mundo, ela também se tornou, ao longo dos séculos, um instrumento de silenciamento e exclusão.

Embasada em critérios eurocêntricos de validação do conhecimento, a ciência ocidental transformou-se numa linguagem oficial que hierarquiza saberes e estabelece fronteiras entre o “conhecimento legítimo” e o “mero saber popular”, entre o “cientista” e o “sabedor”.

Indígenas, quilombolas e moradores das periferias urbanas detêm formas sofisticadas de compreender o mundo. Suas práticas — sejam elas agrícolas, espirituais, educacionais ou de saúde — muitas vezes combinam observação empírica com tradição, memória ancestral e interdependência com o território. Apesar disso, essas epistemologias foram sistematicamente deslegitimadas e classificadas como folclore, superstição ou informalidade.

O espaço acadêmico brasileiro, embora cada vez mais plural em seus corpos discentes, ainda se estrutura de maneira excludente em relação a essas vozes. As revistas científicas, em especial, permanecem como um dos últimos bastiões de uma ciência que raramente se abre à diversidade de formas de produção do conhecimento.

A colonialidade do saber

A socióloga argentina María Lugones (1944-2020) e o sociólogo peruano Aníbal Quijano (1928-2018) abordam o conceito de “colonialidade do saber” para descrever como o processo colonial não se restringiu ao domínio político e econômico, mas também à imposição de um sistema de produção e distribuição do conhecimento. Essa colonialidade produziu hierarquias entre culturas e epistemologias, declarando a ciência europeia como superior e universal.

No Brasil, esse processo resultou na invisibilização dos saberes afro-brasileiros e indígenas, na medicalização das práticas tradicionais de cura e na criminalização das religiosidades de matriz africana. Ainda hoje, os currículos escolares e universitários praticamente ignoram pensadores negros, indígenas e populares.

A ciência, quando apartada de sua função social, torna-se uma tecnologia do poder: seleciona o que merece ser estudado, quem pode ser autor e o que pode ser reconhecido como válido. Nesse cenário, é urgente pensar formas de subverter essa lógica — e as revistas científicas podem (e devem) ser espaços privilegiados para isso.

Experiências editoriais transformadoras

Apesar da predominância de práticas excludentes, algumas revistas acadêmicas vêm promovendo rupturas relevantes e práticas editoriais inclusivas. Esses exemplos demonstram que a abertura à pluralidade epistemológica não significa perda de rigor científico, mas expansão de horizontes.

Em 2023, a revista Cadernos de Campo (USP) publicou um número especial com artigos escritos por autores quilombolas, muitos deles em parceria com antropólogos e pesquisadores universitários. Os textos abordaram temas como territorialidade, espiritualidade, ancestralidade e modos próprios de educação. A revista flexibilizou seu formato editorial, acolhendo narrativas não lineares, relatos orais transcritos, poesias e até trechos de canções tradicionais.

Em 2021, um dossiê com foco em saberes indígenas reuniu lideranças e pesquisadores indígenas como Davi Kopenawa, Gersem Baniwa e professores de universidades interculturais. O processo editorial da revista Ciência e Cultura (SBPC) considerou as particularidades da oralidade e das epistemologias indígenas. O conteúdo não apenas abordava os saberes dessas comunidades, mas os incorporava formalmente na estrutura dos artigos, questionando os padrões hegemônicos de escrita científica.

Com um histórico de abertura às epistemologias periféricas, negras, LGBTQIA+ e feministas, a Periódicus (UFBA) busca romper os limites entre academia, militância e arte. Um dos números recentes contou com a participação de coletivos de jovens das periferias de Salvador, que produziram textos híbridos entre relato, ensaio e desempenho poético.

O desafio da descolonização

As revistas científicas ocupam uma posição estratégica no ecossistema do conhecimento. São elas que definem o que se considera “publicável”, e, portanto, “científico”. Assim, abrir espaço para outras formas de saber é um gesto político de descolonização epistemológica.

É preciso romper com a ideia de que a ciência é um território neutro. A neutralidade foi, muitas vezes, um álibi para manter o status quo. O reconhecimento dos saberes tradicionais como científicos não é concessão, mas reparação histórica. Significa prescindir da autoridade absoluta da academia e reconhecer que há conhecimento produzido fora de seus muros — e que, em muitos casos, a universidade tem mais a aprender do que a ensinar.

A construção de uma ciência plural passa por reconhecer que há metodologias baseadas na coletividade, no afeto, na oralidade e na espiritualidade. Isso desafia o paradigma moderno da ciência como algo objetivo, individualista e desacoplado do mundo.

Propostas práticas

Para que a mudança não fique restrita a experiências pontuais, é necessário institucionalizar boas práticas editoriais. Algumas propostas incluem:

Inclusão de pareceristas com experiência intercultural, capazes de avaliar trabalhos que não sigam a lógica tradicional de escrita científica.

Criação de seções específicas voltadas a saberes tradicionais, epistemologias periféricas, narrativas comunitárias e formas híbridas de expressão.

Apoio à escrita de autores populares, com oficinas, mentorias e simplificação do processo de submissão.

Reconhecimento de autoria coletiva e comunitária, especialmente importante para povos indígenas e quilombolas, cujos saberes são construídos em rede.

Publicação em diferentes línguas, incluindo as indígenas e os registros orais, com traduções bilíngues quando necessário.

Abertura à oralidade e ao desempenho, com possibilidade de envio de vídeos, áudios ou registros multimodais que acompanhem os artigos.

Ciência para (e com) quem?

A pluralização das epistemologias no ambiente acadêmico não é um luxo nem um modismo. É uma necessidade ética, política e científica. Revistas acadêmicas que se abrem para a escuta das bordas não estão apenas inovando seus formatos — estão ampliando os próprios limites do conhecimento.

Para o filósofo lusitano Boaventura de Sousa Santos, precisamos de uma “ecologia de saberes”, onde diferentes formas de conhecer convivam, dialoguem e se fortaleçam mutuamente.

Portanto, promover a presença de vozes indígenas, quilombolas e periféricas no circuito científico é não apenas democratizar a ciência, mas torná-la mais verdadeira, mais enraizada e, sobretudo, mais justa.

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